Foto: Evandro Veiga
Veja a reportagem na íntegra da entrevista do magistrado que afirma que “todos nós nos drogamos”.
O juiz Gerivaldo Neiva, das varas cível e criminal de Conceição do Coité, no Nordeste baiano, virou tema de discussão nacional, nos últimos dias, ao publicar um texto em blog pessoal no qual defende a legalização da maconha. Intitulado “Ontem foi domingo e me droguei muito” – publicado originalmente na página www.gerivaldoneiva.com, no último dia 21 –, o texto narra discussões que ele teve com um grupo de amigos, numa festa, sobre a questão do consumo e combate às drogas.
No texto, o juiz condena a hipocrisia em torno do assunto e a falta de aprofundamento, especialmente do Judiciário, no trato a temas relacionados às drogas. Porta-voz no Brasil do Law Enforcement Against Prohibition (Leap Brasil), que defende a falência das atuais políticas de drogas, Gerivaldo afirma que sua principal intenção era trazer o debate para seu blog. Não esperava que a repercussão fosse tão grande – só no primeiro dia, foram 6.123 leitores.Depois 30 mil, 50 mil, até viralisar e ser repercutido em vários sites, entre eles, o Estadão.
Casado, pai de dois adolescentes, o magistrado tem mais de 30 anos de carreira. Ele recebeu o CORREIO, na quinta, no Fórum de Coité, onde falou sobre a polêmica em torno do texto e voltou a defender as ideias nele expostas.
Como surgiu a ideia para o texto “Ontem foi domingo e me droguei muito”?
A legalização (da maconha) é um tema atual, está nos jornais, revistas. Num domingo, me reuni com amigos que trabalham com dependentes químicos para um churrasco, algo comum. Num tom de brincadeira, um deles disse “Vamos tomar uma cerveja? Mas lembrem: cerveja também, pela catalogação oficial, é droga. Então, álcool, tabaco, maconha, cocaína, são drogas. A diferença é que umas são lícitas, outras não”. Aí, veio o questionamento: estamos nos drogando e isso não tem problema nenhum, para a sociedade e para a lei. Mas se lá fora tiver um menino fumando um baseado, causa um constrangimento nos vizinhos, vão ligar pra polícia e vão prender o menino, por ele estar usando também uma droga. Fiz o texto para provocar essa discussão e consegui esse objetivo.
Num primeiro momento, a leitura dá ideia de que o senhor estaria defendendo o consumo de drogas ilícitas. Por que um texto e título tão provocativos?
Muitos blogs reproduziram o texto e alguns tiveram o cuidado de fazer um título descente, mas outros escancararam: “juiz confessa que usa drogas”. Claro, tomo vinho, cerveja, mas o objetivo é provocar. O que aconteceu foi que muitas pessoas leram o título e pararam no primeiro parágrafo e criticaram: “que juiz louco, drogado… quebrou o decoro…”, mas quem leu até o fim, concordou ou discordou. O que queria é isso mesmo: causar uma inquietação.
O senhor usa drogas? Quais?
Usei tabaco muitos anos. Me fez mal. Fumei muito cigarro. Hoje, uso apenas a droga lícita, que é o álcool e a cerveja. São as drogas que gosto.
Já usou outras drogas?
Nas experiências universitárias, há 20 anos, usei. Estudei Sociologia na Ufba, no final da década de 70, antes de estudar Direito. Naquela época, 100% dos estudantes faziam experiências com maconha. Aí ingressei na magistratura e me moldei ao papel do magistrado na sociedade.
A que o senhor atribui tamanha repercussão do seu texto?
Primeiro, a linguagem que utilizei. Segundo, por ser um juiz de Direito. Não há novidade alguma no texto. Já vem sendo discutido há anos no Brasil, nas universidades, entre neurocientistas, são vários coletivos. Ex-presidentes do mundo inteiro, inclusive Fernando Henrique Cardoso, fazem parte de comissões globais que abordam o assunto.
Quais comentários, na internet, mais lhe chamaram a atenção?
A palavra droga é um grande tabu. Me lembrei de uma campanha publicitária que dizia: “Drogas, nem pensar”. Hoje, vejo um grande equívoco num tipo de campanha desses. Alimenta esse tabu, que drogas é bicho-papão. É preciso pensar, debater muito.
O senhor escreve que policiais, delegados e representantes do MP que também fazem uso de drogas “irão prender jovens pobres e negros, com pequenas porções de maconha ou crack”, justificando a “garantia da ordem pública” e sugere que o destino destes jovens será escrito como acusado por tráfico de drogas “quando as mãos trêmulas e boca sedenta de algum juiz lhe decretar a prisão e lhe esquecer na prisão”…
(Escrevi) para quebrar o tabu. O policial, num dia de folga, toma a cerveja dele. Sou juiz de Direito e posso tomar minha cerveja no domingo. Pesquisa do Ministério da Justiça mostra que 50% das pessoas fazem uso de álcool. Uns causam problemas à sociedade, outros não. É uma ilusão imaginar o mundo sem drogas. O que quis foi normalizar essa situação. O soldado e o juiz podem até se embriagar de álcool, é normal. Mas o grande debate é: por que uma pessoa usa dessa forma, uma droga, e outra que usa uma droga que causa muito menos problemas de saúde ao usuário, como a maconha, não pode usar? As drogas lícitas causam seríssimos problemas aos usuários e, mesmo assim, a sociedade absorve. Do outro lado, a maconha causa infinitamente menos problemas, desde que usada moderadamente, como o álcool.
O senhor não acha que há uma linha tênue entre o usuário e um dependente?
Há um autor americano, neurocientista, chamado Carl Hart, um negro rastafári, que faz palestras no mundo inteiro; ele diz o seguinte: “O problema do crack está na alma”. Então, é a lama de cada um, o seu mais íntimo psiquismo que vai lhe levar a sua condição de dependente. Cada usuário vai ter sua relação própria com a droga. De fato, é uma linha tênue, que depende desse psiquismo de cada um. A vontade de usar drogas é algo, absolutamente, que diz respeito à individualidade.
O que o senhor quis dizer com: “A diferença é que uns, por conta da droga usada, cor da pele e condição social, serão presos e condenados e outros, enquanto cidadãos respeitáveis, tomarão um Engov ou Epocler e assinarão mandados de prisão”?
Que a magistratura brasileira tem uma baixa compreensão das drogas. Isso é fato notório. Não estou depreciando. A magistratura acabou seguindo uma utopia de que a lei e o aparato repressivo são suficientes para a grande crise que o mundo vive hoje com o uso das drogas. A história já mostrou que não basta. O que se vê hoje, e as estatísticas comprovam isso, é que o poder Judiciário está condenando pequenos usuários como traficantes. O Judiciário precisa ter essa compreensão: de que prende o pobre, o negro periférico, porque usa uma droga ilícita, e ao mesmo tempo, o que ele faz? Usa uma droga lícita e está tudo bem, tudo normal.
Entendi…
Se considerarmos uma pizza, a metade da população carcerária no Brasil é de crimes contra o patrimônio. O outro um quarto da pizza é de pessoas presas com o tráfico. Ou seja, três quartos dessa pizza da população roubaram ou furtaram. Essa população é de negros, periféricos, sem formação, que furtaram ou roubaram. Esses dependentes praticaram pequenos furtos e roubos para alimentar seus vícios. É isso que a magistratura brasileira precisa entender. A partir do momento que dermos um tratamento diferenciado a essa questão desses pequenos furtos, roubos e traficantes, estamos tratando diferencialmente 75% da população carcerária brasileira.
E que tratamentos diferenciados seriam esses?
Aplicar as medidas cautelares ao invés da condenação, usar o princípio da insignificância dos pequenos delitos, reduzir as penas, converter para regimes semiabertos ou prestação de serviços à comunidade. Usar de possibilidades doutrinárias e legais no direito, diferentemente da prisão, como se a prisão fosse uma varinha de condão que resolvesse o problema da violência nas cidades.
Que tipo de consequência trouxe esse texto para o cotidiano de sua vida? Ficou famoso?
As pessoas me conhecem. Escrevo muito sobre isso, visito as comunidades. Claro que essa repercussão no Brasil inteiro trouxe uma certa preocupação, sei que estou exposto, uma atitude corajosa minha e tenho que assumir essas consequências da evidência no momento. (Ficar famoso) pela causa é importante. Sou um juiz há mais de 20 anos e já condenei muito jovens, no início de carreira, que tenho a plena consciência que causei mais mal a ele do que bem. Hoje, tenho essa consciência. Porque sei que eles voltaram para uma sociedade que não os acolheu de volta. Hoje, me faz bem promover esse debate, que assim colegas juízes e membros do Ministério Público podem refletir.
O senhor é membro da coordenação estadual da Associação Juízes para a Democracia (AJD), da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Como foi a reação de outros magistrados? Houve algum posicionamento?
Para os grupos da AJD e AMB, a maioria comunga da mesma ideia, da legalização. Com relação à magistratura nacional, nós temos fóruns de debates e li em alguns que colegas discordaram veementemente, não tanto das minhas ideias, mas da minha postura, da exposição do juiz, que o juiz não deveria se expor. Isso foi mais forte.
O senhor usa uma camisa com um desenho da folha da maconha no blog…
A folha é o símbolo da Adidas e a “cannabis” está com a mesma fonte da Adidas. O que quis com aquela camisa, que ganhei de presente de um amigo que foi à Holanda, foi desmistificar, mostrar o magistrado vestindo uma camisa que tem este significado. Na Holanda, a cannabis é um negócio que gera lucro e imposto para o Estado.
Como avaliar suas sentenças quando o caso se trata de um usuário pego com pouca quantidade de droga?
Se no processo, o MP não conseguir provar de que ele vendia continuamente essa substância (ilícita), eu considero para uso pessoal dele e apenas indico ou aconselho, se ele quiser ser submetido a um tratamento. Outro posicionamento meu diz respeito à liberdade provisória. Defiro o pedido desde que seja primário, bons antecedentes, endereço certo e tenha uma profissão. Aqui em Coité, por sorte, não é região de grande tráfico. A droga que chega aqui, é para o uso. Não tenho problemas com grandes traficantes.
A sociedade brasileira está preparada para a legalização?
Nesse momento, não. Mas acredito que o debate público vai chegar a essa preparação. Em nenhum país foi assim. Não se legaliza do dia para a noite. É preciso discutir. Juízes, Ministério Público, policiais, a sociedade; é preciso que se debata nas faculdades, pela imprensa. Se outros países fizeram isso, por que o Brasil não pode? Está mais que na hora de debater o assunto e deixar de lado campanhas do tipo: “Drogas, nem pensar”.
Fonte: Correio24horas